November 1, 2023

a cidade feita de areia

 

Em tempos chuvosos de readaptação, agitam-se os ramos e libertam-se as folhas que já não lhes pertencem. Em Paris faz se sentir aquele tipo de frio que encaracola as extremidades dos pés ao sairmos da cama pela manhã. É precisamente numa dessas manhãs, frescas e chuvosas, que eu tento relembrar os tempos que vivi debaixo do caloroso e radiante sol mediterrâneo.

Cheguei a Barcelona com um único objectivo, inspira-me.

Diria que este é o lugar perfeito para quem procura compreender o verdadeiro valor estrutural da arte numa cidade e na nossa sociedade. A valorização da arte numa cidade influência automaticamente a forma como se vive nela. Em Barcelona isso é visível, a arte infiltra-se nas “ramblas”, nas praças, por vezes em pequenos apontamentos ou em grandes e volumosas demonstrações e é a importância que lhe é dada que transforma a vida mundana desta particular cidade.

 

 

Num evento que concentrava pessoas que acabavam de chegar à capital da Catalunha, reflectíamos e partilhávamos a nossa opinião sobre esta especifica forma de se viver. Por alguma razão nunca me esqueci desta observação que foi proferida na altura: “Aqui as pessoas não são sérias! São demasiado descontraídas, não levam a sério o trabalho!”.

Depois de pensar bastante naquela observação, conclui que, ali as pessoas não são sérias, ali as pessoas são felizes! São demasiado descontraídas, não levam a sério o trabalho, levam a sério a vida! E é um pouco assim que eu vejo Barcelona, um conjunto de pessoas que levam muito a sério o valor de se estar vivo e o prazer de se viver.

 

Em Barcelona vivesse um tempo diferente, saboreia-se muito mais os espaços exteriores e públicos e a arte é uma das grandes contribuições para que haja esse gosto e hábito de se viver fora de casa. As várias vertentes em que a arte se desdobra convida à permanência e desta forma a cidade acaba por estar sempre numa metamorfose viva.

Estar exposta a esta forma de vida e de apreciação pelo ritmo da própria cidade foi extremamente importante para uma primeira fase nesta viagem.

Quando embarquei o gosto pelo desenho já existia, mas definitivamente foi muito mais impulsionado pela vibração citadina de Barcelona.

Esta era a minha primeira viagem a solo e nos primeiros tempos o desenho funcionou muito como uma fuga à solidão.

 

 

A escala de um momento a solo é diferente quando se viaja sozinho, o silêncio é mais constante, mais longo e por vezes pesado. Normalmente quando estamos sozinhos permanecemos dentro deste ciclo de pensamentos repetitivos, a longo prazo isso torna-se desinteressante e até um pouco cansativo estar constantemente compenetrado no nosso mais profundo eu.

Com o tempo, intencionalmente, começamos a divergir deste ciclo e ganhamos a capacidade de nos abstrairmos do nosso tão barulhento silêncio e algo extraordinário acontece. Trata-se da apreciação da vida externa que normalmente não se vê, por ser o pano de fundo do nosso tão central eu. E quando deixamos de estar tão dentro de nós próprios, o mundo exterior passa a ganhar

novas camadas de interesse e é aqui que o desenho se encaixa na perfeição.

Aprender a estar na solidão através do desenho foi essencial, funcionava como uma leitura entre a observação e a captação do momento ao mesmo tempo era uma óptima ferramenta de comunicação para conhecer novas pessoas.

 

 

Foi interessante descobrir que mesmo em sessões de grupo podemos sentir-nosbastante isolados, porque somos um grupo de pessoas que partilha o gosto pelo desenho a solo. No entanto estes encontros foram altamente gratificastes, era sempre uma inspiração ver que existem tantas abordagens e técnicas que formam leituras completamente diferentes do mesmo lugar.

 

 

Durante este mês fui inspirada não apenas pelo desenho, mas por diferentes tipos de experiências artísticas que tive oportunidade de usufruir. Entre elas, gostava de partilhar a memória que tenho de uma peça que de certa forma completou a minha estadia na penúltima noite em Barcelona.

Chamava-se “Triptych: The missing door, The lost room and The hidden floor”, era uma peça que estava dividida em três momentos, em três cenários, cada um deles ilustrava algo através do movimento corpo a corpo e do movimento corpo e espaço. Entre estes três momentos, havia uma espécie de interrupção, onde os cenários mudavam. Mesmo com essa quebra abrupta de luz, de som de espaço, o espectador sentia-se na obrigação de fixar cada ação que se passava em palco. Era quase ingrato, pois tornava-se impossível captar ao num vasto palco todas as mudanças em simultâneo. Esta abordagem ao palco e à própria cenografia representava uma linguagem tão particular, que por vezes deixava o público em dúvida se ainda estaria no espetáculo ou fora. O que pouco interessava, à partida enquanto nos questionávamos era óbvio que estávamos de tal forma dentro para conseguirmos saber se estávamos fora.

A realidade que se dançava em palco, por vezes, passava a ficção a partir da distorção do corpo que bailava. Cada momento procuravam algo, talvez “um ideal”, tudo era como um sonho, onde as esperanças absurdas se perdiam num labirinto.

A proporção de uma brilhante peça para mim, é descrita através daquilo que se sente enquanto espectador.

 

 

“Mudámos 3 vezes.

Aspiramos, varremos e deslumbramos, mexemos, desmontamos, colocamos e dançamos.

Sufocamos de peito cheio de ar que não sabia sair.

Foram 3 partes, 3 momentos, 3 recipientes no céu.

A água caia enquanto se cantava nostalgicamente molhada uma música de bar.

A plateia ignora e socializa, também ela faz parte da mudança.

O espaço nunca é o mesmo e nos já não estamos sentados e isto já não é uma peça, vai para além de mim, dos outros de todos.

Uma porta, um fumo, a água começa a encher o palco.

E o fim começa.”

E assim fiquei atordoadamente inspirada, de respiração curta num corpo que parecia dormente e estaticamente colado num dos assento do Teatro Nacional da Catalunha.

Este feliz acaso de inspiração não teria acontecido se eu não estivesse ficado a viver durante este ultimo mês com a Núria e a sua família, pois foi ela quem me recomendou a peça. Por isso e muito mais, sinto que tive imensa sorte, arranjar estadia por Barcelona foi mesmo encontrar uma agulha num palheiro.

Na altura quando comecei a enviar mensagens para as famílias de acolhimento no programa do Workaway lembro-me dos extensos e elaborados texto que enviava todos os dias e das semanas consecutivas que passavam sem obter qualquer reposta. Até ao dia, em que já sem pingo de esperança, recebo a resposta mais sucinta à minha prolongada e desesperada mensagem: “ Hello Mariana, we are pleased to share this month with you”.

Receberam-me como se fizesse parte da família há um par de anos, por isso e muito mais, fico-lhes eternamente grata. Eram a típica família catalã que almoça às três da tarde, com tomate super maduro barrado num pão super tostado, umas lascas de queijo e umas azeitonas bem marinadas, um “fuet” sempre na manga e quem sabe um copinho ou dois de vinho a acompanhar. E foi assim tal e qual, que eu fui recebida, com partilha, tradição e amabilidade.

São uma família que reconhece o valor e a importância da Sagrada Família, mas nunca sentiram a urgência de a visitar por dentro. Em sua defesa, dizem que estão à espera do dia em que todos os turistas do mundo já a tenham visitado para que as portas se abram exclusivamente a residentes.

Um dia sugeriram que apresenta-se às 8 da manhã na missa da capela original da Sagrada Família :“Talvez consigas visitar a basílica por dentro sem pagar!”, diziam. Gostei do facto de engendrarem este plano para mim, mas acabei por pagar e entrar pela porta principal, como a típica turista que era.

Fiquei completamente cativada por eles enquanto conjunto e enquanto seres individuais. Arrancar para um novo destino é sempre difícil, principalmente quando temos de nos despedir da nossa família.

Por falar em família, drasticamente passamos para um pedaço de construção em constante evolução, a tão emblemática Sagrada Família.

Num documentário sobre a sua construção ouvi a seguinte frase: “(…) é visitar uma floresta que floresceu até ao ponto em que se congelou.”, achei esta descrição magnífica, talvez por ser tão fiel à realidade que se apresentava no interior da Sagrada Família.

No entanto, apesar desse estado petrificado, a delicadeza que as colunas transmitem ao se erguerem como troncos, que se desmembram em ramos variados fazem esquecer o propósito estrutural que estas têm ao sustentar cada elemento que compõe a verticalidade do monumento.

Acredito que parte da sua magia seja criada a partir de uma incompreensível leitura do seu interior, como uma distorção da realidade. A partir da sobreposição e ausência de simetria entre elementos, que por sua vez são intersectados pela rotativa luz que se projecta no espaço à semelhança de uma luz que atravessa as copas das árvores num dia de verão.

É uma maravilha difícil de se esquecer, muito possivelmente numa próxima longínqua visita irei reencontrar uma outra Sagrada Família. Afinal é essa a beleza de algo que está inacabado e que permanece em construção há 140 anos, cada vez é uma vez diferente e cada um visita a sua diferente porém, tão singular Sagrada Família.

 

 

Aos meus olhos será sempre uma espécie de cidade feita de areia, onde tudo é bastante efémero, porém singular. Se quiserem ter a certeza do que falo, visitem o Parque Guell num final de tarde bem quente, quando o sol caminhar na direção das montanhas a oeste observem com muita atenção o horizonte, pois à vossa frente verão a tão utópica cidade feita de areia, Barcelona.