January 10, 2023
o combustível altamente inflamável
Cheguei numa noite ensopada, que não tinha as condições reunidas para me mobilizar numa apresentação digna à cidade que me iria acolher nos próximos meses. Decidi então, seguir para o alojamento dessa noite, um casal francês e argelino super simpático que vivia num prédio nos subúrbios da cidade.
Depois de atravessar duas portas com códigos sofisticados de entrada no prédio, de tirar algumas das camadas de roupa que dali para a frente já não seriam necessárias, entrei no elevador. Fazia-me acompanhar de um senhor na casa dos seus setentas, que ao ver-me atarefada entre mochilas e casacos, me perguntou qual seria o meu andar. Eu respondi: “Le dernier, merci.”. Por alguma razão, nunca me esqueci daquela expressão de sobrancelhas arqueadas que pintava a cara do indivíduo, que respondeu: “Le dernier!”. Já sozinha, aterrei nesse mesmo “Le dernier!”, a porta do apartamento estava semi aberta, a casa estava calma e pouco iluminada, pois por aquela hora o pequeno filho do casal, já se encontrava no seu sétimo sono. Arrestei-me até ao quarto e finalmente libertei-me do peso das mochilas que já acumulavam uma dormência no corpo cansado. Ao caminhar ao longo do silencioso e escuro corredor que terminava numa ampla e envidraçada sala, percebi o que por outras palavras significava “Le dernier!”. A vista nocturna era panorâmica e sem pontos de fuga, àquela hora a sala era exclusivamente iluminada pela cidade luzente que se exibia à minha frente. Dificilmente se confundia esta paisagem com outra qualquer, pois quem poderia esquecer a verticalidade imponente e cintilante de uma Torre Effiel.
Paris nos seus meses longos de inverno ficou marcada pela cidade que fazia os parisienses carrancudos deslizar pelos passeios como se fosse uma pista de gelo e onde a brisa fria e cortante empurrava os turistas obstinado, de extremidades avermelhadas, para dentro dos cafés que vendiam os clássicos: “chocolate chau”, “des croissants”, “les soupes à l’oignon”, e outros tantos que indiscutivelmente deveriam ser sempre algo “pettit”.
O turismo que existe hoje aplicado nas mais famosas cidades europeias funciona quase como um formulário, onde existem vários campos a serem preenchidos e quanto mais preenchermos, significa que mais visitámos logo, regra geral, mais conhecemos. O turismo é uma máquina de negócio que se adapta com o tempo, aquilo que significava visitar uma cidade há uns anos, hoje significa outra coisa totalmente diferente. É compreensível que exista uma aversão cada vez maior a cidades que se tornam explosivamente turísticas, porque tudo se transforma em demasia, somos confrontados com uma realidade díspar onde se erguem muros à volta da cidade com base na superficialidade e no capitalismo.
Aos meus olhos Paris é uma cidade altamente estimulante, cativa-me o facto de esta ser uma espécie de um organismo com o seu próprio carácter. Altamente influenciada por diversos movimentos artísticos, assenta carrancuda numa base estética que se alimenta noite e dia pelos vícios de quem admira profundamente a arte.
Há um constante movimento de coisas a acontecer nela, das suas extremidades até à sua medula sente-se a vibração da extravagância, insensatez, elegância e provocação das várias correntes artísticas, trata-se da valorização da arte ao longo de séculos.
Num dos dias em que fugia do frio dentro de um museu, decidi colocar o meu, mais que recente, francês à prova. Há saída do museu Pettit Palais, havia uns discretos bancos de pedra por de detrás de uma grande escadaria, onde duas senhoras sentadas petiscavam o seu almoço. Decidi juntar-me ao piquenique com a minha “baguette de fromage”, e em poucos minutos, do outro lado do banco surgiu um, “Bonne Appetite”, satisfeita com a possibilidade de uma pequena interacção em francês respondi: “Merci, bon appétit…Je ne parle pas bien Français, Je suis Portugais”.
Decidi regressar numa segunda volta ao “Obsessions of a painter”, pois também eu estava profundamente obcecada pela compreensão daquilo que se apresentava perante mim. Desta vez estava determinada em tirar o meu tempo, estava ali para submergir por completo nos traços poeirentos do pastel e nas aguadas absorventes que construíam as composições sublimes e infinitas dos desenhos de Szafran.
Cada obra era como uma porta que revelava subtilmente a passagem de um tempo, de um lugar, através dessa porta estava outra logo a seguir, com o mesmo tempo e o mesmo lugar, mas de uma forma totalmente diferente. Cada pintura, cada porta, tornava-se mais profunda, mais minuciosa, mais viva. Tinham sempre um princípio, mas nunca um fim e era essa existência do inacabado que permitia a fuga do espectador para o próximo tempo, para o próximo lugar, par ao próximo desenho.
Mais tarde vim a perceber que a repetição na recriação do tempo e do lugar nos desenhos de Szafran, vinha de uma honestidade para com ele próprio e de um questionar do mundo à sua volta.
“I always believed as Alberto Giacometti used to say, that reality is much more powerful than utopia, dreams or fantasy. What was important for me was less to achieve a successful work than to give people the opportunity to look a little more closely. An artist’s role was to provide an alternative regard, a regard that offers an alternative view. “ Sam Szafran
Toda a experiência destes meses invernosos em Paris foi como um vulcão que entrou em erupção, num rebuliço de entusiasmo preenchido de inspiração e aprendizagem. Esta cidade cheia de portas que se enchem de sonhos efémeros, despertou em mim uma visão de possibilidades na vida de quem se quer aventurar e ser artista. No fim, senti que era definitivamente tempo de me afastar, pois Paris nunca deixava de ser um vício altamente drenante. No entanto, houve uma certa dificuldade em abandona-la, pois eu e ela vivíamos do mesmo combustível altamente inflamável, a arte.