March 1, 2023
o escorrega de água
(intro)
Foi já no “Le Nord Pas-de-Calais”, que reencontrei o tão familiar conceito de uma zona costeira. E em dias que nos davam tréguas, permanecíamos sentados de frente para o mar, que estranhamente tinha tanta ondulação como as pequenas dunas que se formavam no extenso areal. Abraçávamos os pequenos privilégios que nos eram oferecidos: sob o céu azul, que era sem excepção pontilhado por gaivotas que esperavam as primeiras “frites”, embebidas em vinagre, que aterrassem no chão, enquanto o sol nos aquecia a pouca pele descoberta, inconscientemente plantávamos um breve esquecimento sobre a razão pela qual nos encontrávamos ali. Porém no horizonte repousava a lembrança constante do nosso propósito em Calais, a silhueta da ilha de todas as esperanças, Inglaterra.
(Calais)
“Calais. Sentir le pouls de cette ville qui sert de frontière entre le continent et l’île de tous les espoirs. Sentir cette cohabitation forcée et insensée. Là bas, l’Angleterre. Si proche et pourtant si loin. On pourrait presque la toucher. Entre nous la mer sombre et glacée. Et le rêve fou qui pousse des hommes et des femmes, souvent très jeunes, parfois très vieux, à se lancer dans la nuit noire et à tout risquer.”
Isabelle B-Emmanuelli
Entre a crença e o cepticismo, entre a tensão e a compaixão, entre a vida e aquilo que acreditamos ser a morte, permanece uma terra quase tão normal como tantas outras. Calais na sua áspera, empobrecida e genuína forma de ser, é marcada pelo francês que vê no seu horizonte as arribas esbranquiçadas do inglês, pelas pessoas que procuram a oportunidade de realizarem mais uma travessia que se traduz num possível futuro, e por nós voluntários, que reconhecemos um horizonte carregado de esperança, adversidade, resistência e desigualdade.
É uma cidade que permanece exposta a uma série de circunstâncias que se desenvolvem ao longo das últimas décadas em redor do fluxo migratório. A degradação existente é fruto das acções implementadas pelos países que compõem esta fronteira, com leis transitórias e desumanas como resposta a um cenário extremamente delicado que carece de uma urgência na adaptação do território em resposta às necessidades básicas de apoio humanitário.
Deixo aqui o testemunho dos dois meses que vivi como voluntária, naquilo que poderemos descrever como uma das várias crises humanitária às portas da Europa.
Em Março deste ano, estava eu no meu segundo mês em Calais, quando se propagava que um novo acordo entre o primeiro-ministro britânico Rishi Sunak e o presidente Emmanuel Macron tinha sido anunciado. Inglaterra comprometia-se a pagar a França mais de 500 milhões de euros ao longo dos próximos 3 anos para prevenir e combater a migração ilegal.
Este tipo de investimento, infelizmente, não se reflecte em nenhum tipo de solução, são milhões de euros que acabam por se traduzir no aumento do número de policiais no centro da cidade e no reforçar das patrulhas da fronteira.
A meu ver a presença desmedida da força policial é um elemento que adiciona uma camada disruptiva no défice social já existente. Há uma constante estratégia de desmobilização contra as pessoas que chegam e que não têm infra-estruturas suficientes que lhes proporcionem o apoio nas condições básicas de abrigo, estas acabam por ficar em acampamentos improvisados, que mais tarde são bloqueados na tentativa de contrariar a permanência dentro da cidade. Este tipo de acções não só implementam o receio e o desconforto em todos nós, que permanentemente e coabitamos neste centro urbano, como também reduz o carácter de interesse cultural e social na cidade.
Poderia tratar-se de uma cidade que investe em respostas ao fluxo migratório, no entanto não existindo investimentos nesse sentido, ou até interesse para que estratégias de acolhimento sejam implementadas, Calais permanece na sua génese um lugar deixado ao abandono, ignorado pelo próprio país que alimenta a continuidade de uma realidade de risco, de receio e de desumanidade.
(definição de fronteira)
Durante os meses de Inverno não é expectável que haja tanta afluência de circulação de pessoas na procura realizar a travessia. No entanto nas primeiras semanas de Janeiro custava a acreditar que aquela era a mesma zona que descreviam como o fim do mundo, onde os dias se enchiam de fortes ventos e aguaceiros. O certo é que estes meses de inverno no início do ano estavam a dar tréguas, o mar estava calmo, era o “mediterrâneo” do norte da Europa. Este sossego na água significava agitação em terra, as chegadas e as partidas que por mais ilegais que sejam representam o desespero de quem procura uma vida com futuro.
Infelizmente nem todas as travessias nesta fronteira são bem sucedidas com um mar calmo. O conceito de fronteira está extremamente bem definido nos seus limites, quando se trata de impedir o outro de entrar no nosso território. Mas se colocarmos a perspectiva numa chamada de ajuda proveniente de um barco que se está a afundar nessa mesma fronteira, a definição do limite deixa de ser tão clara, de um momento para o outro ninguém sabe exactamente qual é o seu limite e o limite do outro. E enquanto se definem limites entre terras, minuto após minuto, entre nações, minuto após minuto, numa fronteira, minuto a pós minuto, um barco bate no fundo e perdem-se vidas. Nesta fronteira já se perderam mais de 209* vidas.
*(dados reportados à data de Fevereiro 2023)
(equilibrismo das associações)
(a minha tribo)
Quando em 2021 participei no “Climes to Go” estava previsto que iríamos apanhar o barco em Calais e nessa que foi uma curta passagem, tivemos a oportunidade de conhecer as diferentes associações que trabalham em conjunto para dar resposta às necessidades existentes no território.
Visitamos a “Warehouse” que servia como base para muitas das associações, mas também como armazenamento de material, muitas das vezes proveniente de doações. Desta breve visita ficou-me guardada na memória uma estrutura composta por placas brancas que formavam uma espécie de uma caixa que se encontrava logo à entrada do armazém. Esta chamou-me à atenção, pela entrada estilo portão de garagem que projectava uma luz quente que atravessava os vapores de água, à distância embaciava-nos a vista, tornando enigmático tudo aquilo que se passava no seu interior. De lá saia música, que ecoava pelos corredores e fazia vibrar as prateleiras industriais que forravam as paredes do resto do armazém. Por alguma razão, nunca me esqueci daquela pequena e secreta caixa, que representava naquele canto escuro e frio do armazém uma fagulha de felicidade.
Eu sabia, que quando regressei a Calais, o meu tempo enquanto voluntária teria de passar indiscutivelmente por essa mesma caixa que tanto me moveu. Dentro dela encontrava-se a RCK, (Refugees Comunity Kitchen), associação para a qual acabei por trabalhar durante esses 2 meses.
A RCK é uma das associações que fornece alimentação, no entanto, é a única que proporciona refeições quentes a pessoas deslocadas no norte de França desde 2015, criando um espaço onde seja possível reunir e conectar através do poder da refeição. Desde que a “Jungle”, o original campo de refugiados, foi demolido em 2016 a associação foi forçada a adaptar-se e criar vários pontos de distribuição, tentando sempre manter de uma forma segura e digna o serviço e fazer chegar a quem mais precisa várias refeições diárias ao longo do dia nas regiões de Calais e Dunkirk.
O que se sente quando se fica durante algum tempo numa associação destas, é que todos fazem um trabalho magnífico e digno com o pouco espaço de manobra e as poucas ferramentas que têm à disposição.
Desde cedo senti que ao trabalhar para a cozinha da RCK, era como trabalhar para uma comunidade que sempre me foi tão familiar. Por alguma razão senti que me encaixava naquele ambiente como se fizesse parte dele desde sempre. Ali senti-me completamente integrada não apenas pelo meu trabalho enquanto voluntária, mas também bastante valorizada como pessoa individual. Podia ser eu própria com as minhas qualidades e defeitos, com os meus ideais e as minhas crenças, que de qualquer das formas iria ser aceite e celebrada por ser genuinamente quem sou. Sabemos que somos inteiramente aceites quando nos sentimos protegidos, úteis e integrados. De certa forma é bonito pensar que foi neste lugar, que carece de tanta compaixão e aceitação, que eu fui encontrar uma comunidade que me abraçou e respeitou de uma forma como eu nunca tinha sentido antes. Acredito que foi ali mesmo, naquele tempo abstracto com aquele grupo de pessoas extraordinárias, que eu encontrei aquilo que se pode considerar como a minha tribo.
(arte como terapia)
Nos dias de folga havia sempre uma sensação de impotência, por não se fazer nada num lugar onde há tanto para fazer. Em dias como este, aprendíamos a lidar com o corpo dormente que palpitava à espera do próximo encargo e com a mente inquieta que tentava preencher o silêncio que existia no tempo de sossego.
Assim, nos meus dias de folga, para dar alento ao corpo e à mente, tomei a decisão de visitar o “Secours Catholique”. Este era o único espaço multifuncional que abria as portas diariamente para receber e abrigar as pessoas deslocadas que não têm um lugar seguro para permanecer e conectar. Este espaço serve o propósito de um lugar onde se pode baixar a guarda e finalmente estabelecer algum contacto com a tão longínqua normalidade onde a sobrevivência deixa de ser a prioridade. Foi ali que encontrei o “Art Refugees”, o grupo que me proporcionou uma das experiências mais importantes enquanto voluntária.
Na minha última semana em Calais tive a oportunidade de compartilhar mais um dia com o “Art Refuges” naquele que era o projeto “The Community Table”. Nesses dias, trocava a azáfama de uma mesa que prepara refeições pela serenidade de uma mesa que desenvolvia o conceito de terapia através da arte. As mesas comunitárias permitem, através da expressão artística, abrir uma janela imaginária que explora directamente a realidade de uma procura de respostas e soluções. Nestas sessões a arte é utilizada como uma ferramenta de exploração e busca. A mesa torna-se um espaço que oferece segurança para manter um diálogo, onde há a celebração de culturas e da diversidade de línguas, há a partilha de histórias e por vezes há a memória de casa. Há uma certa beleza quando a vulnerabilidade colide com fatos reais através da liberdade criativa.
Foi com eles que aprendi a reconhecer mais uma vez o potencial da arte, assim como a inexistência de limites na ajuda que se pode prestar a quem pede e espera pelo asilo. Fiquei extremamente agradecida por partilharem comigo esta experiência e por me convidarem a sentar numa mesa tão especial, é das memórias e momentos mais ternos que guardo desta minha passagem.
(escorrega de água)
Calais foi um lugar que me absorveu totalmente e desmedidamente. Gosto de descrever toda a experiência como uma espécie de escorrega de água, daqueles que têm uma inclinação desafiadora e que de tão escuros que são, torna-se impossível prever todas voltas e contra voltas que se dá. Quando entrei no tubo e senti que fui completamente sugada por toda a água que para lá escorregava, sabia que não havia volta a dar e por momentos fechei os olhos. Entre salpicos deixei-me deslizar até aquele que eventualmente seria o fim do tubo. E foi ao abrir de novo os olhos que realizei, ainda meio atordoada, que tinha acabado de viver uma daquelas experiências genuinamente recompensadoras, daquelas impossíveis de se replicar.
Na hora de mudar torna-se inevitável a sensação de melancolia à despedida, passar da inquietude de deixar para trás tudo aquilo que nos é familiar para o ofegante novo e desconhecido capitulo. Quem sabe um dia, o meu caminho se volte a cruzar com Calais, até lá, esta permanece como uma cápsula de um tempo na memória daquele que por ali passou, com um simples e único objectivo, ajudar o próximo.